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Poemas

sergioaraujo
October 08, 2011
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 Poemas

Sérgio Araújo

sergioaraujo

October 08, 2011
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  1. Da natureza dos poetas Sérgio Araújo Copyrigh by Sérgio Araújo

    Capa Sérgio Araújo Desenho a bico de pena 2006
  2. “Para ter força, s um arteso das palavras. A força

    de um ser é sua língua. E as palvras so mais eficazes que qualquer forma de luta”. Merikar
  3. ab initio I Contam que poetas so seres alados de

    um mundo fantástico onde as flores brotam das pedras e o leito dos rios, do puro brilhante, refletem as maravilhas que estampadas na paisagem fazem o deleite diário desses seres levados. Nesse mundo, desde antes das cordas e das dobras do tempo, desde que a luz se desfez em pingos leves e coloriu o espírito do mundo; esses seres de outro planeta que jamais morrem, continuam suas vidas habitando em corpos luminosos e, volta e meia, conversam através da poesia. A poesia que o mundo transpira e que só pode ser vista nas pequenas coisas, nas intervivncias. Lá onde existe um oceano cheio de perigosos piratas malvados e heróis vingadores em suas naus errantes que singram incertas vagas e tremem nas calmarias. Saga de tits a navegar no mar de silncios. Um corte no pé, ataque de sanguessugas e, de vez em quando, uma espiadela nas meninas tomando banho enquanto suas mes lavam roupas batendo nas pedras e cantarolando alguma modinha dos tempos de menina-moça. Ultraman, super-heróis das figurinhas de chiclete, calça coringa e um dia todo para brincar de Bang-Bang com direito a coldre e revolver com espoletas de papel. Entender a língua do “P”, a língua falada em Alfa de Centauro ou em algum planeta visitado por Flash Gordon. Com ela faço e desfaço. Escuto segredos, construo cochichos, mando recados para o próximo passo. Piso de barro é mais legal e, se chover, melhor ainda. Nada como uma bela falta, daquelas que nos atira para o ar e nos faz deslizar pelo terreno molhado, arranhado, sangrando e sinceramente convencido de que craque é craque! Uma passadinha naquela calha do telhado da vizinha. Que maravilha! Ainda muito frio, mas daqui a pouco passa. É só correr, abrir os braços e sair chutando a água empossada aqui e ali. Outra bica mais forte e logo aparecem os amigos para festejar. Depois, um banho quente acompanhado de um falatório interminável e a promessa de uma surra que nunca vem. II Ela apareceu assim. Assim como quem desce das nuvens. Radiante, com seu sorriso tímido. Isso foi numa tarde de TV e desenho animado. Tarde vadia de férias escolares. Veio de longe. Deve ter sido do paraíso. Mas, no
  4. importa. O que importa é que dali em diante eu

    jamais seria o mesmo. A beleza me tocou e fez de mim poeta. Contador de histórias que nunca existiram, escritor de palavras do linguajar da alma. Assim! Num lance de dados. Eu corri pela rua deserta de gente e povoada de tempestade. Ela corria ao meu lado e me fez perder o medo de raios e troves. Mais tarde, eu seria capaz de enfrentar drages e monstros dos seriados japoneses, que nem So Jorge, guerreiro apaixonado, que ainda habitava a lua cheia. Em breve voaremos arrastados pela ventania dos domingos, em fins de tarde e poderei dizer-lhe de tudo o que sei , da existncia do universo, da causa das desgraças do mundo, dos medos e das injustiças; dos pensamentos ainda no pensados e da possibilidade de sonhar sonhos impossíveis, realizá-los na imaginaço e escrev-los para que outros possam sonhar os seus sonhos. Sonhos de papel, de carne e osso, de sorrisos e lágrimas. III No contei as estrelas naquela noite, porque os sapatos machucavam os meus pés. A lua? Escorregou sobre mim com o nariz inchado e me proibiu de sair de casa. Mas eu queria apertar as estrelas inchadas com os sapatos da lua. Naquela noite, o universo desabou sobre mim em um milho de microscópicas partículas coloridas. Muitas cortaram a escurido do meu corpo nervosamente posto sobre os sapatos metálicos da noite. Outro dia, eu estava a sonhar sonhos de claridades e infinitudes, quando trs lumes incidiram brancos, recortados num corpo branco ao fundo, Branqueado. Branqueagudo sobre o mar enegrecido. Escuro contraste, corexploso no abismo onde os pés passeiam rijos e calmos a percorrer caminhos na areia, descalços. IV No enviei aquela carta que te escrevi. Carteiro algum percorreu a nossa distância, mas voc há de ter lido aquelas palavras distantes e to próximas que enroscavam em sua pele como o corpo de um felino. Contei de mim e de como eu sou o texto base de um plano simples, to simples como a expanso de um astro milenolítico; que costumo destronar os reis e passa-lhes a navalha sem pedir licença ao barbeiro. Contei sobre felicidade e como reparava quando tu dançavas sobre as pedras quentes com braços e pernas de serpente.
  5. V Eram montes, roças, verde perene, a casa estava no

    alto de uma colina. Decorei toda a geografia que havia no caminho, todas as serras e plantaçes de banana. Ao fundo, o rio amarelado pelas águas da chuva parecia querer cortar caminho subindo pelas margens altas. Faz tempo que no te vejo. Há pouco era uma palavra: “Blanc”, uma metade do que hoje sou e o sonho de que numa avenida ensolarada eu pudesse deitar-me contigo sobre as flores da calçada. Todo aquele vale era de um intenso verde metálico, com suas flores de auroras esquecidas nas incomensuráveis janelas e portas pintadas com as cores do amanhecer. Ao longe, nas sombras do firmamento, pequenas nuvens furavam o céu como facas de ponta, velhas e afiadas. Por toda aquela terra, de portas entreabertas ouve-se, silábico, monótono, o som das tépidas manhs que se descortinam, clarisônicas! Recife Por cima Por baixo S a l t a m Cocas tamanho família E entopem Com tampinhas
  6. As malhas da rede Enredada E atada Por nervos ponte-agudos

    Enquanto foge por ali Um casal de apitos Na avenida boa vista Saqueadores de caldo de cana E um velho poste No ponto da torre cinza arcaica Daí em diante Ausente O sol De par a par Pardo Pardeja Em lívidos olhos de janela. Fria Como a água matinal (a janela da casa verde) pinga cacos de vidro fosco. Splat plek tam tam tam a máquina comeu a poesia ao óleo Voc sonha dissonha e atarraca o dedo na CATRACA Plek Splat Tam tam tam castraço
  7. castra aço do dedo que no mais indica codifica Mas

    saque do coldre empoeirado um poema Q U E N T E L O M É T R I C O para ler entre limalhas cuidado Levanta e corre correcorrecorrecorrecorrecorre que a esteira no morre PARA! PEGA! MATA! Splat! Plek! A máquina comeu. Aiabá Aiabá é sempre um galho entre o Nilo e o Amazonas, subiu aos céus em seu espelho caboclo-terra e forjou das ondas da FM- cordas, o cordel satírico do Assaré. Um índio, filho de Funai-mata- mata, requer alforria e bate tam,tam,tam na pedra Içu-cabeça de pau oco. Aiabá sorri no V.T. e arriba... Lá das nuvens açoprateadas, ela nos conta a história de como sua me sobreviveu  tribo do feiticeiro Edi-pô. Arequenas, trombeteiros, galopam seus cavalos marinhos na correnteza bosta-arquivelhas do rio das tripas. Eis Aiabá, maravilhoso cidado dos out-doors. Contam que Aiabá, ao nos visitar, teria feito voar sobre o Abaeté, as cuecas
  8. molhadas dos burgueses. Abá Kura-kura. Fogo nos cabelos verde wave

    e aqui jaz um piro-piro que em vida cruzou o atlântico em busca da palha de aço dos Jesuítas. Aiabá visitou o ano 1274 e rasgou a Suma Teológica em ato puro. Antes, estivera com Heráclito e Éfeso lhe era cara e bela. Podia-se ainda passear, ir s olimpíadas ou participar dos freqüentes concursos de charada promovidos pelo Comit Executivo do Templo de Ártemis e no ano 500 a.C., ganhou o concurso em parceria com Heráclito. Eis a charada: “Concorda o que de si difere: harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira”. Saá-Ká-Tá – certa vez viu Ianomâmi sentado, meditando. Era meio-dia e Ianomâmi, primognito do Pau d`arco, crispando a água brilhante com as garras de uma onça pintada, disse-lhe, citando Maiakovski: - “Os jovens lutam contra esta canonizaço dos escritores-guias, que pisam com o bronze pesado dos monumentos a garganta da palavra nova que liberta a arte”. Riscando a areia com um osso de preguiça, Aiabá respondeu: - a palavra em movimento é minha borduna em riste e minha palavra e a minha borduna so um. - Pois bem – disse Ianomâmi – eu corri a minha mo sob a terra, pisei a lama e moldei com cuspe este pote  minha frente. V? Eu o atirarei ao rio e daqui há dez anos eu o reconhecerei. Ele sou eu! Aiabá partiu e arrastou consigo a louca dança da poeira, veio ver o Robot-rato do novo século e embora no houvesse tempo para entregar-se a brincadeiras pueris,entortou trs antenas, quando sobrevoou o cinza-morto da aldeia próspera. Aiabá bateu em ré- tirada e agora que nos deixou, ainda vive na matéria pretoquente das ruas, dos becos, sobrevivem ainda os seus átomos-cor-silábica a repetir eternamente, onde quer que haja sol, o “Da” que escapou dos lábios do poeta noite a dentro. - Boa noite. Responderam aliviadas, as pessoas que se acotovelavam na pequena janela do sobrado. Era tarde e já no havia mais o que fazer na rua, a menos que se queixe ser notado por quase todas as pessoas em suas janelas ou pelas velhas barulhentas e pouco amáveis diante de um estranho que, de passagem, ensaiou um cumprimento. Decididamente aquela era a polis cor de esmeralda com seus raros aros de marfim. Um grupo de meninos jogava sinuca com bolas de gude num tabuleiro inclinado. Escureceu: dois guénos próximos ao muro pintado com flores do jardim de Montezuma, entendiam a situaço com seus pequenos olhos tardios. Aiabá Pensou:
  9. - Mas como pode um poema atravessar as cordas do

    tempo? Neste instante, interveio uma de olhos negros como os raros cristais da Salmônia e com seu corpo, sua flauta e seus cabelos, voou para pegar com os dedos livres, cada resto de cor que jazia nas cordas. Eram duas a tirar as cores das cordas, Nuas. A noite levou os aprendizes e seus martelos para além das bigornas reluzentes, e se podia cantar. Aiabá concordou e ouviu o poeta que dizia: - eu sou limalha em plena vida. Desejo apenas a insensatez, no me é dado participar de tua falsa segurança, nem quereria eu correr tal risco. - Sim, és um louco! – disse-lhe Aiabá. Mas, Quem te julgará, Se os autos do teu processo ainda no foram lavrados? - Pobre diabo! Que a justiça te seja cega e desejará mil vezes ter sido condenado. E Aiabá visitou mais uma vez o cenário em que tudo começou. Ali, bem ali, onde o sol penetra entre as colunas e incendeia as pedras do cho. Sobre o mar, duas ou trs nadas sopram as espumas das ondas. O sol está bem alto, na praia ouve-se o vento e v-se as pegadas que no levam a lugar algum. Entardeceu: a noite explodia sobre sua cabeça como um balo de gás e espirrava confetes maduros em sua roupa de domingo. Naquele tempo ainda se podia andar pelas ruas sem despertar a cólera dos homens da noite. Um guarda noturno vigiava as fortalezas decadentes e apitava para merecer suas migalhas postas s portas: um pouco de vinho, dinheiro e as nozes recusadas por alguma criança. Por algum tempo, deixou seu pensamento voar em meio s impresses daquela noite. Revirar as pedras e andar pelas ruas para celebrar a Katharsis enquanto as Bacantes erguem-se dos bancos de pedra  beira dos igarapés, douradas e sonolentas a reclamar cada uma  sua maneira, suas porçes de paraíso, suas noites de sonhos. Alguém declamava: - Ah! Viajante maldito. Jamais podero acorrentar-te a esta nau que conduz a todos por caminhos conhecidos, tua carroça é a minha. Ei-la  deriva, disparada pelos campos, cidades, vilas, rios que no te prendem em seus leitos de argila. Solta estas rédeas, atira-as ao vento e grita para que te ouçam: eu possuo o tempo bem aqui na minha mo. Ah! Vrmia maldito, no te conhecem nem conhecero antes do tempo. As lâmpadas dos velhos postes de madeira iluminavam aqui e ali, luz métrica e volátil como os capinzais das orlas das estradas e lá está ele, quando ressoa pelos quatro cantos: Creia-me, tua imagem, eu a vi projetada ainda ontem, como uma
  10. sombra em plástico transparente. Que tens a dizer? Aiabá caminha

    agora, atreve-se a chutar uma lata vazia sobre as pedras da calçada e fala baixinho: - Que faço aqui? É como se estivesse apoiado num parapeito estreito a olhar sobre a marquise. Atrás, sob a mesa, esto os pés de ontem nos chinelos de amanh. Continua a sua caminhada que agora ganha ritmo com o bater dos pés em marcha. Ouve alguém que passa com muita pressa e passa, passa, passa... Certas vozes conhecidas, murmúrios que o tempo no dissipara, ondulavam em sua mente. Restos de diálogos entrecortados por vises há muito esquecidas, batiam como tambores, pulsavam até deixá-lo tonto. Efígie Do alto dos seus últimos andares A cidade passeia tranquilamente. Sob as cortinas, sobre os altares, Em seus vales, silos de serpentes Repousam frios em seus azares Generais intransigentes, Bundas e bustos, infernos capilares Bostas de pombo, renitentes Salpicadas no bronze esverdeado dos Cezares Braços de boneca, Bola de gude no asfalto Alguém morreu ali na esquina, colega Um cafezinho por favor! Táxi! E esse ônibus que no vem, que horror Catarro nas frestas de uma avenida ensolarada. No cho da cidade, A cidade passeia tranquilamente!
  11. Faz tempo que no te vejo! Ainda ontem Desejei deitar-me

    contigo Sobre as flores da calçada. Poesia Presente,ostensiva Vertente literal Primária Dos cânones da língua, pioneira, poemassiva. Poesia, forma to ativa Híbrido cânone, linguitísica Bossal, cinestésica total Cafetina, teleeletroniconcretina. XXXII Idéia vaga Grata. Inconsolavelmente Refratária Poesia Grata inerte Verte Refrata A lítera morte que lhe tecem
  12. Deixarei Que os espaços todos Preenchidos Sejam solavancos Em meu

    corpo de avestruz E em minhas pernas O que reluz Nestes espaços, espaços todos Sejam espaçopernas Que perneem Preenchendo mundos. Arquivos temporários Temporary Files Mind index Maximum monde, Civilization a quo. arcus nimis intensus rumpitur.
  13. As ruas deixam-me sentir O peso dos seus prédios adormecidos.

    Canto da terra Esta terra é assim: rasgada pelo vento. É correnteza na solido de palha e barro das margens empoeiradas. É do homem, do contador de histórias tristes; do homem cortado pela metade, o andarilho de um só caminho de seixos afiados, em pele e osso; do mapa do mundo desenhado nas curvas da picada; na lama e na fumaça pálida dos fins de tarde. É daqui e dali, numa e noutra voz o lamento das rezadeiras, porque a morte é sina ou bônus de vida para os que ficam e no choram, apenas cantam ladainhas. De todos os que olham, apenas as crianças enxergam em cada olho que lhes espantam, que lhes condenam, um sofrimento calado e uma dor que sara no bater das roupas sobre as pedras do rio. Para quem o dia é coisa que se pode contar, mais um tanto vem juntar-se a todos os outros e seus filhos ainda dormem sobre folhas. Suas mulheres apenas pertencem a alguém e no falam porque no ousam falar, sorriem! E na timidez entreaberta das bocas murchas mostram um taquinho de beleza que no aceitam possuir, pois so as mulheres do rio, do carvo e das ervas que crescem sob as sombras das saias em solo fértil. Seus meninos e meninas so prole comum dos terreiros, das
  14. camas de um quarto frio e escuro; até que seja

    dia e esperem sentados, num canto, que o desejo de crescer lhes corrompa e lhes atire cegos, tortos ou dilacerados para os confins de um mundo feito de pau, lata e garrafas vazias. Assim apagam-se os dias e, com eles, vo os velhos para as sombras das paredes sujas de memórias; vo para dentro e se recolhem nas lembranças intercaladas na chama agonizante das lamparinas que lhes acendeu na infância, incendiou na juventude e transformou em cinzas os sonhos loucos de voar com os pássaros, que ainda cantam ao longe. Já lhe aconteceu jogar no com uma pessoa definida, um Joo qualquer, mas com um coletivo — a vontade do mundo por parceiro? Pois eu joguei, e o jogo me é conhecido. V. Khliébnikov
  15. O jogo Temos vagas. Era apenas o que se podia

    ler por entre a neblina que se avolumava em volta da pequena lâmpada acesa sobre a placa suspensa  porta de um prédio velho e ainda em construço. Duas batidas na porta e uma mocinha magra de olhos escuros, vivos e longos cabelos pretos, deu passagem para uma sala sombria, iluminada  luz de duas lamparinas colocadas nas extremidades de um balco de madeira longo e corroído pelo tempo. - Quanto tempo o senhor vai ficar? - Apenas esta noite — respondeu o hóspede noturno. A moça conduziu o hóspede até o terraço, passando por uma escada sem corrimo. - Ento no há leitos individuais? - perguntou o hóspede. - No senhor! Como pode ver, este é o único quarto que existe e aqui esto todos os nossos hóspedes. Dezenas de corpos sonolentos, arrumados em fileiras ao longo das paredes, enfiados em sacos suspensos verticalmente por argolas presas a ganchos de metal. Um único e enorme cobertor suspenso acima das cabeças por fios de nylon, protegia-os contra as intempéries pois no havia teto algum, apenas a noite escura sobre suas cabeças. - Quem so essas pessoas? - indagou perplexo o novo hóspede. - O senhor no sabe? - respondeu a jovem calmamente. - So os jogadores. Chegam aqui aos montes e aqui permanecem até que o jogo recomece....
  16. Das filas Volver aos arcos do nó Revirar As tralhas

    Respirar Entulho Tronco Trambolho Inocente certame do olho Na fria agonia Da Q U E D A. Um poema No nasce do nada É tempo e espada Um poema Nasce na rua Que no é minha Nem sua É pau e pedra Na vida do poeta
  17. Meninos bicudos Quando chove na rua dos meninos bicudos, Um

    galo canta ao meio dia fazendo arrelia do vigia das madrugadas. Os meninos bicudos sabem que as flores mais bonitas So as margaridas das queridas irms Maria. Saltam, correm, buscam borboleta nos bosques E os postes so palitos pelados que brilham nas noites frias. Quando brilha o sol nos bicos dos bules Nas manhs gulosas das mes Maria, Os meninos bicudos, com suas chitas, Comem, bebem e guardam restos de mesa Para o vigia do dia. E quando a noite chega com suas meias e ceias, Os meninos bicudos dizem loas Mas o sono trás sonhos de gigantes, Homem meleca e Zé come lata E os pobres meninos bicudos Fazem bico e choram. Bar continental De pouco tempo disponho Para viver congelado No parapeito estreito Desta janela. Pouco me resta obter Sem optar Por constrangedora aquarela Pateticamente posta Sobre a marquise de ferro fundido Do bar continental. No sei aonde anda Aquela disponibilidade Sempre presente. No sei de quanto tempo disponho Para congelar a vida Sobre a marquise abissal Pateticamente fundida Na alma do bar continental.
  18. Salinas Vida de sal e sol Que adentra a aurora

    E o mar sereno. Vida que imprime o rumo, Que infla o pano, Que apruma o leme E deixa ao vento as sinas soltas sobre a espuma. Vida de pescador Que na bruma leve Carrega o barco ligeiro Nas águas plácidas das Salinas. Vida de coragem, orgulho e fé, Que v no mar a me que ensina. Me que cuida, me menina. Vida de pescador. Vida de todos os sonhos e conquistas, Vida de concha Vida vivida, atrevida Docevida, Margarida. Navegantes Senhores navegantes Parem o barco! O perfil cinético das borboletas azuis Circunavega seus coraçes intranquilos. Adeus Cordas soltas  maré! Atlas, contas do mar, sol, anzol Rebrilham nos olhos de peixe E óleos ancestrais. Canibal  praia. Âncora veloz ao fundo azul. Senhores navegantes, Olhai o fundo fosco da maré azul e Rasgai papiros ilustrados, Mapas E restos semânticos
  19. De bulas pós-ardidas. Senhores navegantes, Libertai as palavras-coisas E surgiro

    versos andantes e rimas-remo Na cara suja da normalidade. Picadeiro Quando criança, estreou no picadeiro do Circo So Jorge. Era uma daquelas peças, capaz de provocar lágrimas até nos cachorrinhos amestrados. Pantomimas  parte, a arte de representar afrouxou os coraçes e escancarou as goelas para os festins encharcados de vinho amargo de ponta de balco. O palhaço nem sempre tinha razo na graça de esconder sob a espessa maquiagem, um espírito de criança. Lindalva, a moça das cordas e dos arcos, desfez casamentos, provocou duelos ao amanhecer e fugiu com o ano para no ceder aos apelos eróticos do apresentador espanhol. A música abafada da velha clarineta inspirou farmacuticos, padeiros e aposentados; criou filarmônicas e construiu maestros que, rapidamente, voltaram ao anonimato dois meses após a rumba fatídica que pôs fim  cíclica lona verde. Como era gostoso aquele lenço estampado a deslizar carinhosamente sobre o ombro, vindo daquela mo doce, pequena, que convidava a bailar numa tenda de ciganos ao som de singelos violinos e terminar perdidos, enamorados, sobre um rochedo qualquer,  luz da lua, acariciando aquele corpo dengoso de dançarina dos trópicos. Fantástico seria viajar com a moça do trapézio; morar em sua barraca e,  noite, furtivamente, olhar seu rosto de perto e enfim acreditar que aquela que ali estava era a mesma musa aérea que com um simples gesto fazia sangrar as unhas do domador. Subir e descer ladeiras era muito fácil, ainda mais se acreditássemos poder subir nos ombros do homem com as pernas de pau e, lá do alto, mijar na cabeça do inimigo predileto. Agora, a vida pôs-se a andar de muletas, pe seus óculos de ponta de nariz e se dedica a contar histórias de quando estreou no picadeiro do Circo So Jorge. Mos invisíveis me torcem e contorcem E, a contragosto Desgosto dos traços e troços Da minha vida útil. Desinventando memórias, Destroçando histórias, Malamanhado em terras alheias. Sons inaudíveis movem e renovam
  20. A volatilidade da minha alma vasta Redesenhando trilhas, Segredando versos

    nas margens do dia. Naquela tarde Ela apareceu assim. Assim como quem desce das nuvens. Radiante, com seu sorriso tímido e seus olhos negros. Da poltrona verde, imóvel; Confuso, Eu apenas sentia. O que mesmo, no sei dizer! Era como uma onda que parte do centro do peito e expande-se por todo o corpo, serena. Isso foi numa tarde de TV e desenho animado. Tarde vadia de férias escolares. Ela Veio de longe. Deve ter sido do paraíso. Mas, no importa. O que importa é que dali em diante eu jamais seria o mesmo. Num instante fez-se um poeta, Um contador de histórias que nunca existiram, escritor de palavras do linguajar da alma. Assim! Num lance de dados. Eu corri pela rua deserta de gente e povoada de tempestade. Ela corria ao meu lado e me fez perder o medo de raios e troves. Mais tarde, eu seria capaz de enfrentar drages e monstros dos seriados japoneses, que nem So Jorge, guerreiro apaixonado, que ainda habitava a lua cheia. Em breve voaremos arrastados pela ventania dos domingos, em fins de tarde
  21. e poderei dizer-lhe de tudo o que sei; da existncia

    do universo, da causa das desgraças do mundo, dos medos e das injustiças, dos pensamentos ainda no pensados e da possibilidade de sonhar sonhos impossíveis, Sonhos de papel.